Um Deus pra
libertar minha avó
Quando se tem dez anos, a vida é tão somente um clarão de
sol, a morte é sombra que não se vê. Intuitivamente, eu sabia - era a reta
final pra minha avó. Então, me intitulei enfermeira-chefe, acreditava piamente que
somente eu, saberia tomar conta dela.
Ora, não se preocupe com estas escaras. Dizia , quando
percebia meu esforço, para trocar-lhe a posição na cama - Estas chagas são como
rosetas em jardim velho, necessárias pra que se perceba o fim. O que preciso
agora menina, é que você caminhe até aquela estante azul e traga um livro de
Neruda. Mas vá devagar, em silêncio, com se calçasse somente meias. Abra a jinela, deixe a lua ouvir o poeta.
Sorri pra ela, corpo sumido sob os lençóis. Janela, vó,
janela. Aquela doce criatura de palavras
erradas, não sabia ler nem escrever, uma pena - tinha uma alma que transbordava
quando ouvia poesia. Especialmente Neruda, a quem considerava - um Deus das
coisas bonitas.
Era a primeira vez que eu enfrentava a morte. Decidi que
deveria manter a cabeça erguida, com coragem, pois se fugisse, certamente
passaria o resto dos dias com medo de tudo. Escolhi a poesia de Neruda para
acompanhar meus passos.
Era só o que podia fazer naquele momento, por mim e por ela. Recolher
os fios do canto do poeta, erguer uma ponte, deixá-la partir.
Tínhamos um ritual noturno. Sob a meia-luz do abajur, numa
atmosfera de rosas e dálias, lia Neruda. Ela fechava os olhos, às vezes repetia
as palavras, baixinho, numa oração. Juro tinha momentos que olhava pra minha
avó - via suas asas - suaves e densas, movimentando-se sob um som abafado, numa
música sem música. Devia ser por que o
sentimento que tinha por ela rodopiava no quarto, tirando o peso da gente. De
vez em quando, ela pedia que eu lesse coisas que eu mesma escrevia. Então sorria,
minha pequena Neruda, dizia emocionada segurando minhas mãos.
Sabia que não era verdade, mas mentirinha na
boca da vó tinha gosto de algodão-doce.
Uma noite, enquanto eu cochilava na poltrona a seu lado - ela
se foi. O quarto mergulhado na luz prateada da lua.
Ajoelhei-me aos pés da cama, rezei baixinho
Vai em paz minha avó. Deixe que Neruda liberte
agora, os “pássaros que dormiam em tua alma”.
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