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domingo, 4 de novembro de 2012

TEXTO DOS ALUNOS - Fátima Parodia


Um Deus pra libertar minha avó

Quando se tem dez anos, a vida é tão somente um clarão de sol, a morte é sombra que não se vê. Intuitivamente, eu sabia - era a reta final pra minha avó. Então, me intitulei enfermeira-chefe, acreditava piamente que somente eu, saberia tomar conta dela.

Ora, não se preocupe com estas escaras. Dizia , quando percebia meu esforço, para trocar-lhe a posição na cama - Estas chagas são como rosetas em jardim velho, necessárias pra que se perceba o fim. O que preciso agora menina, é que você caminhe até aquela estante azul e traga um livro de Neruda. Mas vá devagar, em silêncio, com se calçasse somente meias. Abra a jinela, deixe a lua ouvir o poeta.

Sorri pra ela, corpo sumido sob os lençóis. Janela, vó, janela.  Aquela doce criatura de palavras erradas, não sabia ler nem escrever, uma pena - tinha uma alma que transbordava quando ouvia poesia. Especialmente Neruda, a quem considerava - um Deus das coisas bonitas.
Era a primeira vez que eu enfrentava a morte. Decidi que deveria manter a cabeça erguida, com coragem, pois se fugisse, certamente passaria o resto dos dias com medo de tudo. Escolhi a poesia de Neruda para acompanhar meus passos.

Era só o que podia fazer naquele momento, por mim e por ela. Recolher os fios do canto do poeta, erguer uma ponte, deixá-la partir.
Tínhamos um ritual noturno. Sob a meia-luz do abajur, numa atmosfera de rosas e dálias, lia Neruda. Ela fechava os olhos, às vezes repetia as palavras, baixinho, numa oração. Juro tinha momentos que olhava pra minha avó - via suas asas - suaves e densas, movimentando-se sob um som abafado, numa música sem música.  Devia ser por que o sentimento que tinha por ela rodopiava no quarto, tirando o peso da gente. De vez em quando, ela pedia que eu lesse coisas que eu mesma escrevia. Então sorria, minha pequena Neruda, dizia emocionada segurando minhas mãos.   

Sabia que não era verdade, mas mentirinha na boca da vó tinha gosto de algodão-doce.
Uma noite, enquanto eu cochilava na poltrona a seu lado - ela se foi. O quarto mergulhado na luz prateada da lua.
Ajoelhei-me aos pés da cama, rezei baixinho
 Vai em paz minha avó. Deixe que Neruda liberte agora, os “pássaros que dormiam em tua alma”.

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